23.12.07



Nunca mais


A tua face será pura limpa e viva

Nem o teu andar como onda fugitivaSe poderá nos passos do tempo tecer.

E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

A luz da tarde mostra-me os destroços

Do teu ser.

Em breve a podridão

Beberá os teus olhos e os teus ossosT

omando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viverSempre,

Porque eu amei como se fossem eternos

A glória, a luz e o brilho do teu ser.

Amei-te em verdade e transparência

E nem sequer me resta a tua ausência.

És um rosto de nojo e negação

E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

(Sophia de Mello Breyner)

1.11.07


Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento às coisas regulares e irregulares do mundo.


Ou também: eu envio o amor sob a forma de muitos olhos e ouvidos a explorar, a conhecer o mundo.


Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo da escuridão do mundo.

Porque tudo se escreve com a tua letra.


Fernando Assis Pacheco

28.8.07



Meu país desgraçado!...


E no entanto há Sol a cada cantoe não há Mar tão lindo noutro lado.


Nem há Céu mais alegre do que o nosso,nem pássaros, nem águas ..


.Meu país desgraçado!...


Por que fatal engano?

Que malévolos crimes teus direitos de berço violaram?


Meu Povo de cabeça pendida, mãos caídas,de olhos sem fé— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde a causa da miséria se te esconde.


E em nome dos direitosque te deram a terra,

o Sol, o Mar,fere-a sem dó

com o lume do teu antigo olhar.


Alevanta-te, Povo!Ah!, visses tu,

nos olhos das mulheres,

a calada censura

que te reclama filhos mais robustos!


Meu Povo anémico e triste,meu Pedro

Sem sem forças, sem haveres!—

olha a censura muda das mulheres!


Vai-te de novo ao Mar!

Reganha tuas barcas, tuas forças


e o direito de amar e fecundaras


que só por Amor te não desprezam!


Sebastião da Gama

21.6.07

A paz sem vencedores nem vencidos


Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andersen

5.5.07

mesmo de noite




1. Aquela eterna fonte está escondida,mas bem sei onde tem sua guarida,mesmo de noite.
2. Sua origem não a sei, pois não a tem,Mas sei que toda a origem dela vem,mesmo de noite.
3. Sei que não pode haver coisa tão bela,E que os céus e a terra bebem dela,mesmo de noite.
4. Eu sei que nela o fundo não se pode achar,E que ninguém pode nela a vau passar,mesmo de noite.
5. Sua claridade nunca é obscurecida,e sei que toda a luz dela é nascida,mesmo de noite.
6. Sei que tão caudalosas são suas correntes,Que céus e infernos regam, e as gentes,mesmo de noite.
7. A corrente que desta fonte vemÉ forte e poderosa, eu sei-o bem,mesmo de noite.
8. A corrente que destas duas procede,Sei que nenhuma delas a precede,mesmo de noite.
9. Aquela eterna fonte está escondidaNeste Pão Vivo para dar-nos vida,mesmo de noite.
10. De lá está chamando as criaturas,Que nela se saciam às escuras,mesmo de noite.
11. Aquela viva fonte que desejo,Neste Pão de vida já a vejo,mesmo de noite.

S.João da Cruz

25.3.07

E pedi mais infinito!


Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

José Régio

14.3.07

Deus



COMO É BOM SABER QUE EXISTE UM DEUS

QUE COM SEU AMOR INFINITO

PERDOA OS PECADOS MEUS

OH! MEU DEUS,SOU PEQUENINA

APRENDO MAS NÃO PRATICO TUDO

O QUE O SENHOR ME ENSINA

QUIZERA SER UMA SANTA

ATENDER AOS SEUS DESEJOS

MAS SOU PEQUENA MEU DEUS

TENHO TODOS OS DEFEITOSE

NO MEU PENSAR PEQUENO

VOCE ME FEZ DESSE JEITO

DEUS,SABES QUE SOU PEQUENA

ISSO NÃO LHE CAUSA ESPANTO

POR ISSO ME CARREGAS

NUMA DOBRA DO TEU MANTO Cassiamaral

16.2.07

Eu, etiqueta...


Em minha calça está grudado um nome
/que não é meu de batismo ou de cartório,
/um nome... estranho. /
Meu blusão traz lembrete de bebida /
que jamais pus na boca, nesta vida. /Em minha camiseta, a marca de cigarro
/que não fumo, até hoje não fumei. /
Minhas meias falam de produto /
que nunca experimentei /
mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido /de alguma coisa não provada
/por este provador de idade.
/Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
/minha gravata e cinto e escova e pente, /meu copo, minha xícara, /minha toalha de banho e sabonete,
/meu isso, meu aquilo,
/desde a cabeça até o bico dos sapatos,
/são mensagens,
/letras falantes,
/gritos visuais, /
ordem de uso,
abuso, reincidência, /
costume, hábito, premência, /
indispensabilidade, /
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, /
escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda. /
É doce estar na moda, ainda que a moda /
seja negar minha identidade, /
trocá-la por mil, açambarcando /
todas as marcas registradas, /
todos os logotipos de mercado.
Com que inocência demito-me de ser
/eu que antes era e me sabia /tão diverso de outros, tão mim-mesmo, /ser pensante, sentinte e solitário /com outros seres diversos e conscientes /de sua humana invencível condição.;

Agora sou anúncio, /ora vulgar, ora bizarro, /em língua nacional ou em qualquer língua /(qualquer, principalmente). /E nisto me comprazo, tiro glória /de minha anulação. /Não sou - vê lá - anúncio contratado. /Eu é que mimosamente pago /para anunciar, para vender /em bares festas praias pérgulas piscinas, /e bem à vista exibo esta etiqueta /global no corpo que desiste /de ser veste e sandália de uma essência /tão viva, independente, /que moda ou suborno algum compromete.;

Onde terei jogado fora /meu gosto e capacidade de escolher, /minhas idiossincrasias tão pessoais, /tão minhas que no rosto se espelhavam, /e cada gesto, cada olhar, /cada vinco de roupa /resumia uma estética? /Hoje sou costurado, sou tecido, /sou gravado de forma universal, /asio de estamparia, não de casa, /da vitrine me tiram, me recolocam, /objeto pulsante mas objeto /que se oferece como signo dos outros /objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso /de ser não eu, mas artigo industrial, /peço que meu nome retifiquem. /Já não me convém o título de homem, /meu nome novo é coisa. /Eu sou a coisa, coisamente.;


Drumond de Andrade

Tarde,Te amei


Tarde te amei, Beleza antiga e tão nova,tarde te amei...

.Estavas dentro de mim e eu estava fora...

Estavas comigo e eu não estava contigo......

Tu chamaste-me, gritaste,e venceste a minha surdez.

Tu mostraste a tua luz e a tua claridade expulsou a minha cegueira.

Tu espalhaste o teu perfume, eu respirei-o

E suspiro por ti.

Eu saboreei-te,tenho fome e sede de ti

Tu tocaste-me

E eu queimo do desejo da tua paz.


Santo Agostinho

6.2.07

À Virgem Santissima



Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia.
Num sonho todo feito de incerteza,
De noturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade

E (mais que piedade) de tristeza...
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,

Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Antero de Quental

31.1.07

ARIANE

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.



Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

MIGUEL TORGA
Prisão do Aljube - Lisboa, 1 Jan 1940

13.1.07

12.1.07

CHAMO-TE


Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que eu quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o teu reino antes do tempo venha.
E se derrame sobre a Terra
Em primavera feroz
precipitado.
Sophia de Mello Breyner

7.1.07

as ondas


As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.



Sophia de Mello Breyner Andresen

Quero só trazer à memória o que me dá esperança...

Hino da Restauração da Independência



A PORTUGUESA