14.12.09

Andava um dia


Andava um dia
Em pequenino
Nos arredores
De Nazaré,
Em companhia
De São José,
O bom Jesus,
O Deus Menino.

Eis senão quando
Vê num silvado
Andar piando
Arrepiado
E esvoaçando
Um rouxinol,
Que uma serpente
De olhar de luz
Resplandecente
Como a do Sol,
E penetrante
Como diamante,
Tinha atraído,
Tinha encantado.

Jesus, doído
Do desgraçado
Do passarinho,
Sai do caminho,
Corre apressado,
Quebra o encanto,
Foge a serpente,
E de repente
O pobrezinho,
Salvo e contente,
Rompe num canto
Tão requebrado,
Ou antes pranto
Tão soluçado,
Tão repassado
De gratidão,
De uma alegria,
Uma expansão,
Uma veemência,
Uma expressão,
Uma cadência,
Que comovia
O coração!

Jesus caminha
No seu passeio,
E a avezinha
Continuando
No seu gorjeio
Enquanto o via;
De vez em quando
Lá lhe passava
A dianteira
E mal poisava,
Não afroixava
Nem repetia,
Que redobrava
De melodia!

Assim foi indo
E foi seguindo.
De tal maneira,
Que noite e dia
Numa palmeira,
Que havia perto
Donde morava
Nosso Senhor
Em pequenino
(Era já certo)
Ela lá estava
A pobre ave
Cantando o hino
Terno e suave
Do seu amor
Ao Salvador!

João de Deus


12.12.09

Sou um evadido


Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Fernando Pessoa

9.12.09

Santo Natal para todos/as os/as visitantes!!

Oh meu Jesus adorado
Fecha os teus olhos divinos
Num soninho descansado;
Que a não sermos tu e eu
Todo a gente do povoado,
Desde os velhos aos meninos,
Há muito que adormeceu.

Dorme, dorme, dorme agora
(Cantava a Virgem Maria)
Que mal assomou a aurora,
Sentei-me junto ao tear
E por todo o dia fora,
Até que já se não via,
Não deixei de trabalhar!
E o Menino Jesus não se dormia
E o menino Jesus não se dormia ...

Tornava Nossa Senhora,
Numa voz mais consumida:
Dorme, dorme, dorme agora
E que eu descance também,
Porque mesmo adormecida
Vela sempre, a toda a hora,
No meu peito, o amor de mãe.
E o Menino Jesus não se dormia.

Numa voz mais fatigada,
Tornava a Virgem Maria:
Dorme pombinha nevada,
Dorme, dorme, dorme bem ...
Vê que está quase apagada
A frouxa luz da bugia,
Do pouco azeite que tem.
E o Menino Jesus não se dormia.

Rogava Nossa Senhora:
Modera a tua alegria ...
Não deites a roupa fora
Do teu leito pequenino ...
Não rias mais. Dorme agora
E brincarás todo o dia ...
Dorme, dorme, meu menino.
E o Menino Jesus não se dormia.

Mais triste, mais abatida,
Pedia a Virgem Maria:
Tem pena da minha vida,
Que se a quero é para ti...
Vida aflita e dolorida!
Só por ti a viveria
Tão longe de onde nasci!...
E o Menino Jesus não se dormia.

E a voz da Virgem volveu:
Repara no meu olhar,
Vê como ele entristeceu...
Dorme, dorme, dorme bem,
Oh alvo lírio do céu!
Olha que estou a chorar,
— Tem pena da tua mãe!
Nosso Senhor, então, adormeceu ..

Augusto Gil

30.11.09

Patrão Joaquim Lopes


Ganhou que os traz ao peito
hábitos e medalhas
nunca matando irmãos

mas a rasgar mortalhas!
Tomás Ribeiro

Nasceu em Olhão em 1798 e faleceu em Paço de Arcos em 1890, com 92 anos. Pouco depois de ter aprendido a ler e escrever, começou a trabalhar no mar, com cerca de dez anos, exactamente no mesmo ano (1808) em que decorreu a revolta de Olhão contra os franceses e o caíque Bom Sucesso foi ao Brasil avisar o príncipe regente da restauração da província (Ver Viagem do caíque Bom Sucesso).

Aos 19 anos emigrou como pescador para Gibraltar mas, sem sucesso, pelo que aos 21 anos foi viver para a Vila de Paço d'Arcos, onde trabalhou como remador da falua do Bugio. Aqui tornou-se Patrão de Salva-Vidas, tendo-se destacado por imensa bravura ao salvar centenas de vidas na Barra do Tejo.

Foi condecorado com a Ordem da Torre e Espada pelo Rei D. Luís, a patente de 2º Tenente da Armada pela Marinha, e uma condecoração do governo britânico pelo salvamento da tripulação de duas escunas inglesas.

Teve funeral nacional organizado pela Marinha.

No cemitério de Oeiras pode-se visitar o seu mausoléu, e em Paço d'Arcos existe um monumento de homenagem na rotunda da Avenida Marquês de Pombal.(na Wapedia)

No monumento constam os versos citados.

26.11.09

Sophia


"Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é
necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma
relação justa com o homem.
Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é
logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo.
Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno.
É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.
E é por isso que a poesia é uma moral. [...]
Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão.
[...]
O facto de sermos feitos de louvor e protesto
testemunha a unidade da nossa consciência."

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Arte Poética II

Lágrima de preta


Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio

António Gedeão



30.10.09

outra margem


E com um búzio nos olhos claros

Vinham do cais, da outra margem
Vinham do campo e da cidade
Qual a canção? Qual a viagem?

Vinham p’rá escola. Que desejavam?
De face suja, iluminada?
Traziam sonhos e pesadelos.
Eram a noite e a madrugada.

Vinham sozinhos com o seu destino.
Ali chegavam. Ali estavam.
Eram já velhos? Eram meninos?
Vinham p’rá escola. O que esperavam?

Vinham de longe. Vinham sozinhos.
Lá da planície. Lá da cidade.
Das casas pobres. Dos bairros tristes.
Vinham p’rá escola: a novidade.

E com uma estrela na mão direita
E os olhos grandes e voz macia
Ali chegaram para aprender
O sonho a vida a poesia.

Maria Rosa Colaço

(Musicado por Trovante no álbum Baile no Bosque, 1981)

4.10.09

O que é bonito...


O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...


(Miguel Torga)

5.9.09

Uma escada


Uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.
Os degraus,quanto mais altos,
mais estragados estão.

nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.
Quem tem medo não a sobe.
Quem tem sonhos também não.

Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração.
Sobe-se numa corrida.
Correm-se perigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão.


David Mourão-Ferreira

29.8.09

O pavão



Era um pavão brilhante e lindo
Naquele azul radioso do seu corpo
Mas as penas da cauda
Verdes e azuis já não estavam

Não perdeu o porte soberano
no seu magnifico andar
Mas uma grande melancolia

Nublava-lhe o olhar...

22.8.09

Então e as lenga-lengas?


Sola, sapato,
Rei, rainha
Foi ao mar
Buscar sardinha
Para a mulher
do juiz
Que está presa
Pelo nariz;
Salta a pulga
Na balança
Que vai ter
Até à França,
Os cavalos
A correr
As meninas
A aprender,
Qual será
A mais bonita
Que se vai
Esconder?

recolha de Luísa Ducla Soares


Quantas vezes joguei às escondidas depois do apuramento da lengalenga para quem se escondia e quem ficava a descobrir

ou

um,do li tá

cara de amendoá

quem está livre

livre está


e ainda outra:

De rabo fiz navalha,
De navalha fiz sardinha,
De sardinha fiz farinha,
De farinha fiz menina,
De menina fiz camisa,
De camisa fiz viola,
Fu..frum..fum...fum
Que vou para Angola.

Canções de embalar


Era o meu Pai que se dedicava a essa tarefa...quantas vezes bem cansado ...mas sempre com o mesmo gosto...as que me lembro aí estão:

As cobrinhas d’água

São minhas comadres

Se por lá passares

Dá-lhe lá saudades.



Dá-lhe lá saudades

Saudades minhas

Se por lá passares

Ao pé das cobri(nhas).


O menino que anda na roda

já julga que é alguém

é mas é um macaquinho

que nem barbas tem

Nossa Senhora
faz meia
com linha feita de luz
o novelo é lua cheia
as meias são para Jesus



Olha a rolinha
q'anda no mato
quando mal
se precata
dá o caçador com ela

Que noite serena
que lindo luar
que linda barquinha
que eu vejo nomar
vem,vem ó meu anjo
fujamos daqui
que a noite está bela
e o luar nos sorri

21.8.09

A Balada da Neve




Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
. Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho…

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…

E descalcinhos, doridos…
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!…

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!…
Porque padecem assim?!…

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
e cai no meu coração.

Augusto Gil

8.8.09

Palram pega e papagaio


Palram pega e papagaio

E cacareja a galinha,

Os ternos pombos arrulham,

Geme a rola inocentinha.

Muge a vaca, berra o touro

Grasna a rã, ruge o leão,

O gato mia, uiva o lobo

Também uiva e ladra o cão.

Relincha o nobre cavalo

Os elefantes dão urros,

A tímida ovelha bala,

Zurrar é próprio dos burros.

Regouga a sagaz raposa,

Brutinho muito matreiro;

Nos ramos cantam as aves;

Mas pia o mocho agoureiro.

Sabem as aves ligeiras

O canto seu variar:

Fazem gorjeios às vezes,

Às vezes põem-se a chilrar.

O pardal, daninho aos campos,

Não aprendeu a cantar;

Como os ratos e as doninhas,

Apenas sabe chiar.

O negro corvo crocita,

Zune o mosquito enfadonho,

A serpente no deserto

Solta assobio medonho.

Chia a lebre, grasna o pato,

Ouvem-se os porcos grunhir,

Libando o suco das flores,

Costuma a abelha zumbir.

Bramam os tigres, as onças,

Pia, pia o pintainho,

Cucurica e canta o galo,

Late e gane o cachorrinho.

A vitelinha dá berros,

O cordeirinho balidos,

O macaquinho dá guinchos,

A criancinha vagidos.

A fala foi dada ao homem,

Rei dos outros animais:

Nos versos lidos acima

Se encontram em pobre rima

As vozes dos principais

6.8.09

A judia


Dorme! eu descanto a acalentar-te os sonhos,
Virgens, risonhos, que te vem dos céus!
Dorme! e não vejas o martírio, as magoas,
Que eu digo às águas e não conto a Deus!

Anjo sem pátria, branca fada errante,
Perto ou distante que de mim tu vás,
Há de seguir-te uma saudade infinda,
Hebrea linda, que dormindo estás!
Onde nasceste? Onde brincaste, oh bela?
Rosa singela que não tens jardim?
Em Jafa? em Malta? em Nazareth? no Egipto?
Mundo infinito, e tu sem berço?! oh! Sim.

Dorme, que eu velo, sedutora imagem,
Grata miragem que no ermo vi;
Dorme – impossível – que encontrei na vida!
Dorme querida que eu não volto aqui!
Folha que o vento da fortuna impele!
Vítima imbele que o tufão roubou!
Flor que n’um vaso se alimenta, cresce,
Ri, desaparece, e nunca mais voltou!

Filha dum povo perseguido e nobre,
Que o mundo encobre o seu martírio, e crê!
Sempre Ashevero a percorrer a esfera!
Desgraça austera! Inabalável fé!
Porque há de o lume de teus olhos belos,
Mostrar-me anelos d’infinito ardor?
Porque esta chama a consumir-me o seio?…
Deus de permeio maldiz o amor!…

Peito! meu peito, porque anseias tanto?
Pranto! Meu pranto, basta já, não mais!
É sina, é sina; remador, voltemos;
Não n’a acordemos… para quê, meus ais?…
Dorme, que eu velo, sedutora imagem,
Grata miragem que no ermo vi;
Dorme – impossível – que encontrei na vida!
Dorme querida que eu não volto aqui!

Tomás Ribeiro (1831- 1901), poeta português

24.7.09

Lua de Londres


É noite:o astro saudoso

rompe a custo um plúmbeo céu

Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu.
Traz perdida a cor de prata,
Nas águas não se retrata,
Não beija no campo a flor;
Não traz cotejo de estrelas,
Não fala de amor às belas,
Não fala aos homens de amor.

Meiga lua, os teus segredos
Onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
Das praias d'além do mar?
Foi na terra tua amada
Nessa terra tão banhada
Por teu límpido clarão?
Foi na terra dos verdores,
Na pátria dos meus amores
Pátria de meu coração?

Oh que foi! Deixaste o brilho
Nos montes de Portugal,
Lá onde nasce o tomilho,
Onde há fontes de cristal;
Lá onde viceja a rosa,
Onde a leve mariposa,
Se espaneja à luz do sol;
Lá onde Deus concedera
Que em noite de primavera
Se escutasse o rouxinol.

Tu vens ó lua, tu deixas
Talvez há pouco o país
Onde do bosque as madeixas
Já têm um flóreo matiz:
Amaste do ar a doçura,
Do azul céu a formosura,
Das águas o suspirar!
Como hás de agora entre gelos
Dardejar teus raios belos,
Fumo e névoa aqui amar?

Quem viu as margens do Lima,
Do Mondego os salgueirais,
Quem andou por Tejo acima,
Por cima dos seus cristais;
Quem foi ao meu pátrio Douro,
Sobre a fina areia de ouro,
Raios de prata espargir,
Não pode amar outra terra,
Nem sob o céu de Inglaterra
Doces sorrisos sorrir.

Das cidades a princesa
Tens aqui; mas Deus, igual
Não quis dar-lhe essa lindeza
De teu e meu Portugal:
Aqui a indústria e as artes,
Além de todas as partes
A natureza sem véu;
Aqui ouro e pedrarias,
Ruas mil, mil arcarias,
Além... a terra e o céu.

Vastas serras de tijolo
Estátuas, praças sem fim
Retalham, cobrem o solo
Mas não me encantam a mim;
Na minha pátria uma aldeia,
Por noite de lua cheia
É tão bela, e tão feliz!
Amo as casinhas da serra,
Coa lua da minha terra,
Nas terras do meu país.

Eu e tu, casta deidade,
Padecemos igual dor,
Temos a mesma saudade,
Sentimos o mesmo amor;
Em Portugal o teu rosto
De riso e luz é composto;
Aqui triste e sem clarão;
Eu lá sinto-me contente,
E aqui lembrança pungente
Faz-me negro o coração.

Eia, pois, oh astro amigo,
Voltemos aos puros céus,
Leva-me, oh lua, contigo,
Preso num raio dos teus;
Voltemos ambos, voltemos
Que nem eu nem tu podemos
Aqui ser quais Deus nos fez;
Terás brilho, eu terei vida,
Eu já livre, e tu despida
Das nuvens do céu inglês.


João de Lemos


22.7.09

A BONECA


Francisca Júlia (BRASIL)

Nenê, a rede embalando,
quer provocar a soneca
à sua linda boneca
nuns versos que vai cantando:

“Bonequinha, bonequinha,
tão lourinha,
por que ficas a sorrir,
sem dormir?

A tua rede balanço
no vai-vem;
os olhos fecha de manso,
que o sono vem.

“Bonequinha, bonequinha,
tão lourinha,
por que ficas a sorrir,
sem dormir?

CAVALEIRO DO CAVALO DE PAU


Afonso Lopes Vieira


Vai a galope o cavaleiro e sem cessar

Galopando no ar sem mudar de lugar.

E galopa e galopa e galopa, parado,

E galopa sem fim nas tábuas do sobrado.

Oh!, que brabo corcel, que doídas galopadas,

Crinas de estopa ao vento e as narinas pintadas!

Em curvas pelo ar, em velozes carreiras,

O cavalo de pau é o terror das cadeiras!

E o cavaleiro nunca muda de lugar,

A galopar, a galopar a galopar!…


O noivado do sepulcro


O Noivado do Sepulcro

Balada

Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soouu;
Que paz tranqüila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranqüila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na mormórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?

Amor! engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem dentre os vivos se lembrara ainda
Do pobre morto que na terra jaz?

Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!

Ai qão pesada me tem sido!"e em meio
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos prostestos nossos,
Gozes com outro d'infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!"

— "Ó nunca, nunca!" de saudade infinita,
Responde um eco suspirando além...
— "Ó nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinais, airosas.
Longas roupagens de nevado cor;
Singela c'roa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado:
Vês este peito? reina a morte aqui...
É já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas ainda pulsa com amor por ti.

Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?

Saudosa ao longe vês no céu a lua?"
— "Ó vejo sim... recordação fatal"
— Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.

Ó vem! se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso do teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios co cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletdos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

Soares de Passos
(ultra romantismo)

20.7.09

A criança


A criança,
Toda a criança
Seja de que raça for,
Seja negra, branca, vermelha, amarela,
Seja rapariga ou rapaz.
Fale que língua falar,
Acredite no que acreditar,
Pense o que pensar,
Tenha nascido onde fora,
Ela tem direito...

Amor,
Alimentação,
Casa,
Cuidados médicos,
O amor sereno de mãe e pai,
Ela vai poder
Rir,
Brincar,
Crescer,
Aprender a ser feliz...

Matilde Rosa Araújo

14.7.09

Oração de Todas as Horas




Agora,
que eu já não sei andar nas trevas,
não me roubes a Tua Mão, Senhor,
por piedade!
Voltar às trevas não sei,
e sem a Tua Mão não poderei
dar um só passo em tanta Claridade.

Pelas Tuas feridas minhas, pelas tristezas
de Tua Mãe, Jesus.
não me deixes, no meio desta Luz,
de pernas presas...

Não me deixes ficar
com o Caminho todo iluminado
e eu parado e tão cansado
como se fosse a andar ...

Sebastião da Gama


13.7.09

Em Busca


Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado…
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro do meu mal — o mal de que provenho.

Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.

A minh’alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o azul começa a diluir-se em astros…

E à beira do caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros…

José Duro


8.7.09

Cântico Negro

José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


Fado Falado


Fado Triste
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada de uma raça
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar

Mãos doloridas na guitarra
que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando à traição, ciume e morte
E um coração a bater forte

Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dia de procissão
Da Senhora da Saúde

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinho
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama

Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:

Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar

Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca a sombra dele
Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, levião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro
Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele

E o ciume chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu
Correm vertigens num grito
Direito ou maldito que há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua

Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem
e entendem sua dor
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar

E pouco a pouco o amor regressou
Como lume queimou
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir

Há gargalhadas no ar
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado.

Anibal Nazareth

31.5.09

Jardim perdido


Jardim em flor, jardim da impossessão,
transbordante de imagens mais informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das árvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava,
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou denso
Dum gesto mais profundo em ti contido,
Pois trazias em ti suspenso
Outro jardim possível e perdido.

Sophia de Mello Breyner Andresen

6.5.09

São Francisco e o Lobo


O Lobo de S. Francisco de Asis


Andava o povo assustado
A fazer a montaria
Ao grande lobo esfaimado,
Que tanto mal lhe fazia.

Ele levava nos dentes,
Agudos e carniceiros,
Os meninos inocentes
Que são os alvos cordeiros.

E as pessoas assaltando,
Vinha de noite, em segredo,
Com seus olhos chamejando,
Encher a gente de medo.

Ora S. Francisco, era
Incapaz de querer mal
Mesmo que fosse a uma fera,
Até ao tigre real.

Tinha tão bom coração
Que homens e bichos o amavam,
E as andorinhas poisavam
Na palma da sua mão...

E como ele desejava
Que tudo vivesse em paz,
Enquanto o povo caçava,
O Santo, o Poeta, que faz ?

Procura o lobo cruel,
E, tendo-o encontrado enfim,
Chamou-o, foi para ele
Sorriu-lhe e falou assim:

- «Eu sei porque fazes mal,
«Eu sei o que te consome:
«Tu és tão mau afinal,
« Tu és mau porque tens fome
...

«Pois bons amigos seremos,
«Para nosso e teu descanso;
«E de comer te daremos
«Para poderes ser manso.

«Promete que hás-de mudar
«De vida, neste momento;
E em sinal de juramento,
Alevanta a pata no ar
«E põe-na na minha mão!

Jurou o lobo. E cumpriu...
Depois, toda a gente o viu
Tão mansinho como um cão.



(Afonso Lopes Vieira)

Quero só trazer à memória o que me dá esperança...

Hino da Restauração da Independência



A PORTUGUESA