10.3.18

Eu, etiqueta..

Eu, etiqueta... 
Em minha calça está grudado um nome /que não é meu de batismo ou de cartório, /um nome... estranho. /Meu blusão traz lembrete de bebida /que jamais pus na boca, nesta vida. /Em minha camiseta, a marca de cigarro /que não fumo, até hoje não fumei. /Minhas meias falam de produto /que nunca experimentei /mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido /de alguma coisa não provada /por este provador de idade. /
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, /minha gravata e cinto e escova e pente, /meu copo, minha xícara, /minha toalha de banho e sabonete, /meu isso, meu aquilo, /desde a cabeça até o bico dos sapatos, /são mensagens, /letras falantes, /gritos visuais, /ordem de uso, abuso, reincidência, /costume, hábito, premência, /indispensabilidade, /e fazem de mim homem-anúncio itinerante, /escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. /É doce estar na moda, ainda que a moda /seja negar minha identidade, /trocá-la por mil, açambarcando /todas as marcas registradas, /todos os logotipos de mercado.Com que inocência demito-me de ser /eu que antes era e me sabia /tão diverso de outros, tão mim-mesmo, /ser pensante, sentinte e solitário /com outros seres diversos e conscientes /de sua humana invencível condição.; Agora sou anúncio, /ora vulgar, ora bizarro, /em língua nacional ou em qualquer língua /(qualquer, principalmente). 
/E nisto me comprazo, tiro glória /de minha anulação. /Não sou - vê lá - anúncio contratado. /Eu é que mimosamente pago /para anunciar, para vender /em bares festas praias pérgulas piscinas, /e bem à vista exibo esta etiqueta /global no corpo que desiste /de ser veste e sandália de uma essência /tão viva, independente, /que moda ou suborno algum compromete.; Onde terei jogado fora /meu gosto e capacidade de escolher, /minhas idiossincrasias tão pessoais, /tão minhas que no rosto se espelhavam, /e cada gesto, cada olhar, /cada vinco de roupa /resumia uma estética? 
/Hoje sou costurado, sou tecido, /sou gravado de forma universal, /asio de estamparia, não de casa, /da vitrine me tiram, me recolocam, /objeto pulsante mas objeto /que se oferece como signo dos outros /objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso /de ser não eu, mas artigo industrial, /peço que meu nome retifiquem. /Já não me convém o título de homem, /meu nome novo é coisa. /Eu sou a coisa, coisamente. 
Drumond de Andrade

Quero só trazer à memória o que me dá esperança...

Hino da Restauração da Independência



A PORTUGUESA